Conto 6 – A Rebelião dos Sem Rumo


Se você acha que a morte é o fim, está enganado. Se acredita que depois dela vem paz, luz ou um descanso merecido, está ainda mais enganado. Aqui não tem harpa, nem anjo, nem calmaria eterna. O que existe é poeira vibracional, gritos abafados e um sistema tão injusto quanto o da Terra. Um espelho sombrio da realidade intrafísica, onde as estruturas de poder se reproduzem com a mesma ferocidade. Aqui é o mundo além. Cão. Literalmente.

Bardo nunca foi um nome. Foi uma cicatriz. Na Terra, nasceu sem saber de quem. Jogaram ele num orfanato sujo, onde o café era fraco, as palmadas eram fortes e o amor, um conceito mitológico. Foi adotado por um casal de religiosos que tratava a "salvação" à base de cintadas e jejum. Apanhava por sorrir, por respirar, por existir.

— A graça de Deus não é de graça, moleque! — vociferava o pai adotivo, com a cinta em mãos.

Cresceu aprendendo que quem apanha demais aprende a bater. E ele bateu. Na escola, na rua, na vida. Foi empurrado para as drogas cedo, e logo vendia mais do que usava. Aos 17, já chefiava uma boca de fumo. Aos 25, era conhecido como "Bar", dono de uma rota de cocaína que cruzava três estados. Não vivia, sobre-existia. Não amava, negociava. Não confiava, impunha medo. Morreu como viveu: em fuga, numa BR molhada, com um fuzil no banco de trás e 40 mil em notas pequenas dentro da jaqueta.

Quando abriu os olhos, ainda estava na pista. Mas a sirene não fazia sentido. O corpo dele estava ali. Mas ele... estava inteiro. Estranho. Intacto. O clarão apareceu logo, como dizem que sempre acontece.

— Mas que merda é essa? — murmurou, encarando a luz. — Primeiro tentam me matar em nome de Deus, depois querem que eu vire purpurina astral?

Cuspiu pro chão, virou as costas e caminhou. Não ia entrar numa luz sem saber o que tinha do outro lado. Tinha aprendido na Terra que todo brilho esconde um preço.

Nos dias (ou meses, ou anos) seguintes, encontrou outros como ele. Gente que não quis seguir. Revoltados, perdidos, exilados da moral espiritual. Formaram uma gangue. No começo era só sobrevivência: sugar energia de vivos, infiltrar-se em cultos malfeitos, interromper velórios desorganizados.

— A gente não é demônio, não. Mas se for pra escolher entre inferno e call center de anjo, prefiro pilotar minha morte em paz — dizia Bardo, enquanto afinava a corrente da sua moto feita de raiva condensada.

Logo virou mais: uma identidade, uma causa, uma arma. A Gangue da Rodovia Negra. Eram as sombras sobre duas rodas. Motos forjadas da raiva, jaquetas encharcadas de memórias. Eles corriam pelas estradas espirituais, criando rupturas nos fluxos, zonas de interferência, bloqueios em canais de reencarnação. Atravessavam o entremundos como um trovão. E Bardo? Era o Alfa. O Cão Alfa.

As ações da gangue cresceram. Começaram a arregimentar novatos, recém-desencarnados confusos que vagavam em desespero. Bardo os encontrava antes dos Corretores do Destino e oferecia algo que o sistema jamais ofereceria: liberdade para errar, liberdade para ser. Os motoqueiros fantasmas tornaram-se mito. Alguns os chamavam de anarquistas astrais. Outros, de justiceiros vibracionais. Eles se viam como libertadores.

— Se é pra vagar no escuro, que seja de farol alto e motor gritando — dizia Bardo, levantando poeira nos campos de almas.

Do outro lado, o sistema espiritual tentava manter o controle. As Colônias Avançadas, verdadeiras cidades de luxo vibracional, tinham governos próprios, torres de cristal, tecnologia mental e escudos morais. Os que mereciam estavam lá. Os "evoluídos". Os que pagaram seu karma com cartão premium. O resto? Bilhões de almas jogadas em zonas umbrais, zonas neutras, zonas de reeducação. A maioria não passava nem da triagem.

E quem cuidava da triagem? Os Corretores do Destino. Entidades de terno e pastas, burocratas da consciência, gerentes de almas. Cada um com sua agenda astral, mapas kârmicos, algoritmos de comportamento.

— Você vibra em 12.37 hertz, então vai pro Setor Delta-3. Não discute, a planilha já está pronta — dizia um deles com cara de contador galáctico.

— E se eu quiser ir pra outro lugar?

— Não é sobre querer. É sobre perfil.

Foi num desses encontros que Ari apareceu. Um niilista, morto dormindo, que acordou do outro lado com a mesma ausência de esperança.

— Sério que isso aqui é o além? Cadê o cafezinho, os anjinhos tocando lira? Que piada... — disse, ao escapar da primeira tentativa de alocação.

Recusou o tratamento espiritual. Recusou os centros de acolhimento. Recusou até mesmo a ideia de "cura". Ele não queria atravessar. Queria entender. Ou explodir tudo.

Quando conheceu a gangue, Bardo reconheceu o vazio nos olhos dele.

— Você não tem medo do inferno?

— O inferno é ter acreditado que a vida tinha algum sentido.

— Gosto de você. Bem-vindo ao barulho.

Juntos, planejaram a rebelião. Não seria mais uma emboscada em velório, nem uma invasão de centro de umbanda mal protegido. Eles queriam destruir o sistema. Começaram com uma estação de triagem. Invadiram em forma de tempestade. Correntes vibracionais, máscaras feitas de memórias, músicas em frequências que desestabilizavam os protocolos.

— Bora bagunçar os céus! — berrava Bardo, girando sua corrente flamejante.

Libertaram centenas de consciências classificadas como "inaptas". Muitos enlouqueceram. Outros fugiram. Alguns, relembraram quem eram. E entre os libertos, começaram a formar pelotões. Pelotões de espectros cansados de pedir permissão para existir. Começaram a se espalhar como praga. Como ideia. Como vírus.

Mas a resposta veio rápida. Os Capturas. Entidades da ordem. Não eram guias. Eram carrascos silenciosos. Sem rosto. Sem moral. Com autoridade absoluta. Foram caçando um a um. Bardo segurou até onde deu. Mas foi selado numa cela dimensional. Um campo de contenção que isolava pensamento, emoção e histórico. Um limbo de silêncio branco.

Mas ele não estava derrotado.

— Podem me prender. Mas não podem parar o ronco das rodas que acordam os mortos.

A gangue não havia acabado. Ari escapou. Outros também. E o plano seguinte já estava em curso: invadir colônias espirituais elevadas. Hackear os portais. Derrubar os escudos vibracionais. Levar a palavra do caos onde só havia conforto. Criar um novo mapa espiritual. Um mundo além... cão, mas sem dono.

Por toda parte, relatos se espalham. Vultos sobre rodas surgindo em zonas neutras. Mantras sendo interrompidos por sussurros. Códigos de luz corrompidos. Uma insurgência contra o capitalismo espiritual. Uma rebelião contra o dogma do merecimento. Uma guerra informal de almas insubmissas.

E em ruínas astrais, em muros de consciências em colapso, uma nova frase surge:

"Aqui ninguém vai pra luz sem antes explodir o templo."

Porque até mesmo na morte, quem tem fome não quer paz. Quer justiça. Quer ruído. Quer escolha. E às vezes, só às vezes, quer vingança.

---


Autoria e infos gerais>>> Este conto compõe o livro Viajantes da Luz na Escuridão - Contos Extrafísicos, criados a partir da 'Teoria do Mundo Além, Cão', de E. E-Kan, autor brasileiro. Mais infos aqui. Contato: ekanxiiilc3@gmail.com 

Comentários

FORMULÁRIO DE CONTATO

Nome

E-mail *

Mensagem *

Postagens mais visitadas deste blog

Conto 1 – Os Cães Que Esperam

Conto 2 – O Pregador e os Condenados

Conto 5 - A morte sobre duas rodas

Conto 3 – Fragmentos de Isadora

Conto 4 – O Menino e o Fogo Silencioso