Conto 2 – O Pregador e os Condenados


Ele era pastor. Chamava-se Elias de Santana, mas todos o conheciam como “Pastor Elias, o ungido do fogo”. Por trinta anos, gritou nos púlpitos das igrejas das periferias, pregando salvação aos gritos e vendendo bênçãos por boleto bancário. Dizia curar doenças, expulsar demônios, multiplicar dízimos e até “mover as mãos de Deus”.

Morreu de maneira irônica. Engasgou com um pedaço de carne durante um almoço com empresários evangélicos, no mesmo restaurante onde celebrava contratos de terrenos sagrados e acordos com políticos. O espírito deixou o corpo no exato instante em que uma taça de vinho caiu no chão e um garçom correu com guardanapos. Nem orações, nem arcanjos. Apenas silêncio, um corpo estendido e um crachá caído no chão escrito: “Ministro de Deus”.

Acordou num campo sem céu. Cinza, estéril. Tudo parecia suspenso. Sem vento, sem cheiro, sem tempo. Havia uma fila. Centenas, talvez milhares, de pessoas aguardavam em silêncio, todas vestidas com roupas antigas, misturadas entre trapos e mantos sacerdotais. Elias tentou passar na frente, mas foi contido por uma força invisível. Sentiu-se nu. A autoridade que o sustentava em vida agora parecia um papel molhado.

— Eu sou servo de Deus! — gritou. — Apóstolo! Ungido!

Ninguém respondeu. Nem mesmo um olhar.

Uma figura se aproximou. Rosto sereno, voz firme.

— Aqui não vale título, Elias. Aqui vale peso.

— Peso?

— Peso da alma.

Ele olhou para as próprias mãos e viu que estavam manchadas. Cada mancha era um rosto, uma promessa não cumprida, um medo vendido como fé.

— Mas eu... eu preguei! Fiz o bem!

— Você negociou o sagrado. Pregou para alimentar o próprio ego, não para libertar. Amou o poder, não o rebanho. Essa fila é para os que falaram em nome de Deus e esqueceram de ouvir.

A vergonha foi como um sopro quente no peito. Elias tentou ajoelhar-se, mas nem os joelhos obedeciam. Estava sem comando. Pela primeira vez, sem púlpito, sem plateia, sem máscara.

A fila avançou. No fim dela, não havia julgamento, nem juízes. Apenas um espelho. Um espelho feito de dor e lembrança. Um por um, os viajantes olhavam para si mesmos — e o que viam decidia o rumo que tomariam.

Quando chegou sua vez, Elias tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. No reflexo, não estava velho, nem morto. Era o jovem que um dia sonhara servir. O rapaz simples do interior, antes da fama, antes do dinheiro, antes da igreja virar empresa.

E ao lado desse jovem... estavam os olhos da mãe. Olhos de amor. Amor verdadeiro, sem contratos.

O espelho se quebrou.

Elias acordou novamente, mas agora num beco escuro, onde outras almas tremiam. Ali não havia tortura. Só solidão. Era o que chamavam de “esfera dos vazios”. Um lugar para quem se perdeu de si.

Caminhou entre os caídos e sentou ao lado de uma senhora que balbuciava versículos como se fossem canções infantis.

— Todos aqui erraram? — perguntou.

— Todos aqui esqueceram de amar — respondeu a mulher, sem abrir os olhos.

E então, no silêncio denso daquele não-lugar, Elias chorou. Não por medo, mas por memória. Lembrou-se de quando orava sem pedir nada. Lembrou-se do pai na roça, do irmão desaparecido. Lembrou-se da primeira vez que sorriu com fé de verdade.

Ao longe, ouviu passos. Era um menino. Sujo, magro. Carregava uma lamparina feita de vidro rachado.

— Você veio me buscar? — perguntou Elias.

— Ainda não. Só vim acender o caminho. Um dia, todos saem daqui. Mas primeiro... é preciso olhar para dentro até encontrar alguma luz.

O menino acendeu a lamparina e, por um segundo, o beco escuro pareceu uma capela invisível. As sombras, por breves instantes, lembraram asas. E Elias, o pregador que tinha tudo, mas esqueceu de sentir, entendeu finalmente o que nunca dissera no altar:

A fé sem amor é só mais um grito.


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Autoria e infos gerais>>> Este conto compõe o livro Viajantes da Luz na Escuridão - Contos Extrafísicos, criados a partir da 'Teoria do Mundo Além, Cão', de E. E-Kan, autor brasileiro. Mais infos aqui. Contato: ekanxiiilc3@gmail.com 

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