Conto 4 – O Menino e o Fogo Silencioso


O nome dele era Ameen. Tinha oito anos quando a bomba caiu. Não sabia ler, mas sabia correr. Não sabia sobre política, mas sabia onde era seguro se esconder. Cresceu entre ruínas e explosões, aprendendo desde cedo que o mundo era feito de barulho, poeira e medo. O pai morreu quando ele ainda era um bebê. A mãe sumiu numa das evacuações. Desde então, Ameen vivia com a avó, num abrigo de concreto onde o tempo não passava. Até o dia em que o céu rugiu mais alto do que nunca.

O som foi seco. O calor, imediato. Tudo virou branco.

Quando abriu os olhos, estava sozinho no campo. Um campo sem fim, onde o chão era feito de cinzas que não queimavam. Nenhum prédio, nenhum soldado. Nenhuma arma. Apenas um céu parado e um vento que não soprava.

— Yamma? — gritou.

Nada respondeu.

Ameen começou a caminhar. Estava inteiro. Não sentia dor. Apenas um vazio que se parecia com cansaço. Após algum tempo, viu figuras no horizonte: homens, mulheres, crianças. Todos imóveis. Os olhos brilhando como carvão em brasa. Todos calados.

— Onde eu estou? — perguntou.

Uma menina se virou. Devia ter a mesma idade.

— No corredor dos que morreram cedo demais.

— A guerra...?

— Sempre a guerra.

— Eu morri?

Ela assentiu. Com uma serenidade que nenhuma criança viva teria.

— E agora? — perguntou Ameen.

— Agora você escolhe: ou vira fumaça... ou vira fogo.

Ele franziu o cenho.

— Como assim?

— Se você se esquecer de quem é, vira fumaça. Apaga. Se lembrar... se transformar a dor em chama... vira fogo. Ilumina outros.

Ameen não entendeu. Mas também não discordou. Apenas seguiu andando. Conforme caminhava, passava por memórias que flutuavam no ar, como fotografias queimadas no vento. A bola velha feita com pano. O pão quente que a avó fazia em silêncio. O som do rádio em dias de silêncio entre os bombardeios. O irmão mais velho, que nunca voltou.

Parou diante de uma imagem congelada: ele, pequeno, sentado no colo da mãe. Ela cantava em outra língua. Ameen chorou. E o campo reagiu: pela primeira vez, o vento soprou. Um sopro quente, que atravessou as cinzas e fez a poeira dançar.

— Ela ainda está viva? — perguntou ao vazio.

E uma voz respondeu. Uma voz que não vinha de fora, mas de dentro.

— Sim. Mas perdeu você. E parte dela também se apagou.

Ameen caiu de joelhos. Olhou para o céu estático e murmurou:

— Eu queria abraçar ela uma última vez.

Então, o chão se abriu como um lago. E nele, Ameen viu a mãe: deitada sobre um lençol, olhos vermelhos, segurando a camisa chamuscada que um dia fora dele. Chorava em silêncio.

Ele se aproximou da imagem. Encostou a mão translúcida no reflexo. E uma fagulha saiu de sua palma — uma pequena luz dourada que tocou o peito da mulher. Na mesma hora, ela respirou fundo e sussurrou:

— Eu te amo, Ameen.

A luz cresceu.

O campo sumiu.

A menina reapareceu ao lado dele.

— Agora você pode ir — disse.

— Para onde?

— Para onde todos os viajantes da luz vão. Não é céu, nem paraíso. É outro lado da escuridão. Onde há caminho, não castigo.

Ele olhou para trás e viu as outras crianças. Algumas se dissolvendo em fumaça. Outras se acendendo em fogo.

— Posso voltar um dia?

A menina sorriu, mas não respondeu.

No instante seguinte, Ameen se tornou chama. Não fogo que destrói, mas fogo que guia. Uma centelha. Um brilho na noite de outra alma.

E por entre as ruínas de uma cidade que não tinha mais nome, uma criança acordou de um pesadelo com um sussurro no ouvido:

— Você não está sozinha.


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Autoria e infos gerais>>> Este conto compõe o livro Viajantes da Luz na Escuridão - Contos Extrafísicos, criados a partir da 'Teoria do Mundo Além, Cão', de E. E-Kan, autor brasileiro. Mais infos aqui. Contato: ekanxiiilc3@gmail.com 

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