Conto 3 – Fragmentos de Isadora
Isadora morreu aos 19 anos. Um bilhete rasgado, uma janela aberta e um silêncio que ninguém ouviu. A vida, para ela, tinha se tornado insuportável. Os cortes invisíveis eram mais fundos que os da pele. As vozes na mente mais cruéis que qualquer agressor. E o mundo, com seus filtros e frases feitas, parecia zombar de sua dor real.
Mas ela não sentiu paz. Não sentiu alívio.
Acordou em um quarto que não existia. Paredes sem cor, chão que não fazia som. Havia apenas uma cama, e sobre ela, um espelho estilhaçado e uma boneca sem olhos.
— Que lugar é esse? — sussurrou, tocando a própria pele translúcida.
Ninguém respondeu.
Saiu do quarto e vagou por corredores tortos, onde portas levavam a outros quartos que eram versões distorcidas de sua vida: a festa de Natal em família onde era chamada de drogada e vadia veladamente, a escola onde sofreu bullying, a festa em que foi ignorada, o hospital onde implorou por ajuda sem ser ouvida. Cada espaço era um eco da dor. Um replay daquilo que ninguém notou.
Isadora não sabia que estava morta. Apenas suspeitava que algo estava errado. O tempo ali parecia circular, e a solidão era tão densa que às vezes parecia respirar com ela.
Até que um dia, ou algo parecido com um dia, ela encontrou uma mulher sentada num banco de pedra no meio de uma praça. Tinha cabelos brancos, mas olhos jovens. Lia um livro invisível.
— Você também está perdida? — perguntou Isadora.
— Não exatamente. Eu estou aqui para encontrar quem está esquecendo de si.
— Eu... eu não sei se existo mais.
A mulher fechou o livro e olhou diretamente para ela.
— Quando você morreu, não se permitiu atravessar. Ficou presa nos seus fragmentos. Isso aqui é um entrelugar. Se você esquecer quem foi, apaga. Se lembrar com amor... atravessa.
— Eu não quero lembrar.
— E é por isso que está presa.
Isadora chorou. Não lágrimas de saudade, mas de medo. Porque dentro dela ainda doía. E havia, no fundo, uma raiva infantil de estar viva... ou morta... ou ambas as coisas.
A mulher se aproximou e tirou do bolso uma caixa pequena.
— Aqui estão os seus pedaços. Memórias apagadas. Sentimentos que você negou. Verdades que você engoliu.
Isadora abriu a caixa. Dentro havia cenas. A primeira vez que dançou no quarto sozinha. O dia em que protegeu um gatinho da chuva. A carta que escreveu e nunca enviou para a avó. O abraço do irmão quando ela teve febre. A risada que soltou vendo um filme bobo.
Ela caiu de joelhos.
— Eu achava que só havia dor... mas também teve isso?
— Sempre tem. Mas a dor grita. O amor sussurra. E você calou os sussurros.
A mulher desapareceu. No lugar dela, um corredor se abriu — feito de luz escura. No final, algo brilhava. Não um céu, não um Deus. Mas uma árvore. Enorme. Antiga. Viva.
Isadora caminhou.
Atrás dela, os fragmentos se reuniam em forma. Não era mais uma alma quebrada. Era uma viajante. Daquelas que carregam cicatrizes como mapas ou tatuagens. Uma viajante que passou pelo caos da solidão de chumbo, mais pesada que o céu e, ainda assim, mesmo perdida, tentava se reencontrar.
Ao alcançar a árvore, sentou-se sob a sombra e dormiu. Pela primeira vez, em paz.
E os galhos, silenciosos, balançaram em reverência.
Às vezes, é na escuridão que o espírito se ilumina.
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Autoria e infos gerais>>> Este conto compõe o livro Viajantes da Luz na Escuridão - Contos Extrafísicos, criados a partir da 'Teoria do Mundo Além, Cão', de E. E-Kan, autor brasileiro. Mais infos aqui. Contato: ekanxiiilc3@gmail.com
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