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Mostrando postagens de julho, 2025

Conto 6 – A Rebelião dos Sem Rumo

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Se você acha que a morte é o fim, está enganado. Se acredita que depois dela vem paz, luz ou um descanso merecido, está ainda mais enganado. Aqui não tem harpa, nem anjo, nem calmaria eterna. O que existe é poeira vibracional, gritos abafados e um sistema tão injusto quanto o da Terra. Um espelho sombrio da realidade intrafísica, onde as estruturas de poder se reproduzem com a mesma ferocidade. Aqui é o mundo além. Cão. Literalmente. Bardo nunca foi um nome. Foi uma cicatriz. Na Terra, nasceu sem saber de quem. Jogaram ele num orfanato sujo, onde o café era fraco, as palmadas eram fortes e o amor, um conceito mitológico. Foi adotado por um casal de religiosos que tratava a "salvação" à base de cintadas e jejum. Apanhava por sorrir, por respirar, por existir. — A graça de Deus não é de graça, moleque! — vociferava o pai adotivo, com a cinta em mãos. Cresceu aprendendo que quem apanha demais aprende a bater. E ele bateu. Na escola, na rua, na vida. Foi empurrado para as drogas ...

Conto 5 - A morte sobre duas rodas

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O ronco do motor cortava a noite como navalha. Chuva leve, pista molhada, e o velocímetro sorrindo feito psicopata. — Amor, devagar... — disse Júlia, com aquele jeito de “fala sério, mas não briga”. — Tamo vivos, né? Então vamo viver — respondeu Ricardo, mais interessado em parecer invencível do que em chegar inteiro. Dois segundos depois: o impacto. A curva não perdoou. Nem o poste. Nem o asfalto. Tudo ficou escuro. Mas só por alguns instantes. Ricardo abriu os olhos no acostamento. Sentia o cheiro de borracha queimada, a eletricidade no ar. Viu a moto, o caos. E então viu a si mesmo. — Tá de brincadeira — murmurou. Júlia também estava ali, de pé, olhando a própria cabeça sangrando no chão como quem vê um documento extraviado. — A gente morreu, né? — ela perguntou. — É... parece que sim. — Que bosta. Foram ao velório. Gente chorando, flores desorganizadas, playlist evangélica mal escolhida. Os amigos falaram bonito. Os tios disseram que foi “Deus que quis”. E a mãe dela desabou nos br...

Conto 4 – O Menino e o Fogo Silencioso

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O nome dele era Ameen. Tinha oito anos quando a bomba caiu. Não sabia ler, mas sabia correr. Não sabia sobre política, mas sabia onde era seguro se esconder. Cresceu entre ruínas e explosões, aprendendo desde cedo que o mundo era feito de barulho, poeira e medo. O pai morreu quando ele ainda era um bebê. A mãe sumiu numa das evacuações. Desde então, Ameen vivia com a avó, num abrigo de concreto onde o tempo não passava. Até o dia em que o céu rugiu mais alto do que nunca. O som foi seco. O calor, imediato. Tudo virou branco. Quando abriu os olhos, estava sozinho no campo. Um campo sem fim, onde o chão era feito de cinzas que não queimavam. Nenhum prédio, nenhum soldado. Nenhuma arma. Apenas um céu parado e um vento que não soprava. — Yamma? — gritou. Nada respondeu. Ameen começou a caminhar. Estava inteiro. Não sentia dor. Apenas um vazio que se parecia com cansaço. Após algum tempo, viu figuras no horizonte: homens, mulheres, crianças. Todos imóveis. Os olhos brilhando como carvão em ...

Conto 3 – Fragmentos de Isadora

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Isadora morreu aos 19 anos. Um bilhete rasgado, uma janela aberta e um silêncio que ninguém ouviu. A vida, para ela, tinha se tornado insuportável. Os cortes invisíveis eram mais fundos que os da pele. As vozes na mente mais cruéis que qualquer agressor. E o mundo, com seus filtros e frases feitas, parecia zombar de sua dor real.  Mas ela não sentiu paz. Não sentiu alívio. Acordou em um quarto que não existia. Paredes sem cor, chão que não fazia som. Havia apenas uma cama, e sobre ela, um espelho estilhaçado e uma boneca sem olhos. — Que lugar é esse? — sussurrou, tocando a própria pele translúcida. Ninguém respondeu. Saiu do quarto e vagou por corredores tortos, onde portas levavam a outros quartos que eram versões distorcidas de sua vida: a festa de Natal em família onde era chamada de drogada e vadia veladamente, a escola onde sofreu bullying, a festa em que foi ignorada, o hospital onde implorou por ajuda sem ser ouvida. Cada espaço era um eco da dor. Um replay daquilo que ning...

Conto 2 – O Pregador e os Condenados

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Ele era pastor. Chamava-se Elias de Santana, mas todos o conheciam como “Pastor Elias, o ungido do fogo”. Por trinta anos, gritou nos púlpitos das igrejas das periferias, pregando salvação aos gritos e vendendo bênçãos por boleto bancário. Dizia curar doenças, expulsar demônios, multiplicar dízimos e até “mover as mãos de Deus”. Morreu de maneira irônica. Engasgou com um pedaço de carne durante um almoço com empresários evangélicos, no mesmo restaurante onde celebrava contratos de terrenos sagrados e acordos com políticos. O espírito deixou o corpo no exato instante em que uma taça de vinho caiu no chão e um garçom correu com guardanapos. Nem orações, nem arcanjos. Apenas silêncio, um corpo estendido e um crachá caído no chão escrito: “Ministro de Deus”. Acordou num campo sem céu. Cinza, estéril. Tudo parecia suspenso. Sem vento, sem cheiro, sem tempo. Havia uma fila. Centenas, talvez milhares, de pessoas aguardavam em silêncio, todas vestidas com roupas antigas, misturadas entre trapo...

Conto 1 – Os Cães Que Esperam

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Era terça-feira quando Otávio morreu. Sem aviso, sem doença, sem despedida. Simplesmente caiu enquanto tomava café na varanda de casa. A xícara rachou ao bater no chão e, segundos depois, o coração também. Não houve tempo de pensar em nada. Nem medo. Apenas um ruído surdo no peito, um escurecer breve e... silêncio. Quando “acordou”, não era mais terça. Não era mais tempo. Era outra coisa — algo denso, pesado, feito de névoa. Estava de pé, parado diante do próprio corpo no chão. A boca levemente torta. A camisa amassada. O jornal ainda dobrado ao lado. Tentou tocar o próprio braço e passou direto. Tentou gritar, mas o som morreu nele mesmo. E então percebeu: tinha cruzado o rio. Estava do outro lado. O velório foi um fracasso, como quase tudo que tentou em vida. A capela branca do crematório, com bancos de madeira gastos e ar-condicionado estalando, parecia mais uma sala de espera de hospital abandonado. Havia flores genéricas, as mesmas que a funerária colocava por padrão. Nenhum amigo...

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